domingo, 21 de agosto de 2011

Entrevista com Alexandre Karsburg, ajuda a entender melhor a presença de monges na região de fronteira;

Esta entrevista foi concedida por Alexandre Karsburg, pesquisador que a longa data vem palmilhando os passos do Monge Joao Maria desde seu nascimento até sua morte, esta entrevista concedida é mais uma prova do reconhecimento dos trabalhos que estao sendo realizados aqui;

1. Quem foi o monge João Maria?
Alexandre Karsburg[1]: Monge João Maria é como ficou conhecido no sul do Brasil o peregrino italiano chamado Giovanni Maria de Agostini. Nascido em 1801, na região do Piemonte, pertencia à família de proprietários de terras da província de Novara. Na adolescência, foi aluno de seminário religioso, porém, após a morte da mãe, em 1819, abandonou os estudos e foi para Roma, vivendo ali por algum tempo. Seguiu, posteriormente, para a França e Espanha percorrendo o já famoso Caminho de Santiago de Compostela. Entre as peregrinações tentou se tornar um monge cenobita (monge que vive em comunidade), porém, não conseguiu adequar-se à reclusão dos mosteiros. Em crise espiritual, resolveu atravessar o Oceano para trabalhar como missionário religioso na América, afirmando estar cumprindo promessa à Virgem Maria. Portanto, como leigo e peregrino (pois não obteve ordenação sacerdotal), desembarcou em Caracas, na Venezuela, em 1838, dando início a sua “odisséia” pelo Novo Mundo. Na expectativa de viver como eremita e pregador, as possibilidades que se apresentaram o levaram a percorrer um longo e arriscado itinerário. Atuou como missionário religioso pelos sertões meridionais brasileiros entre 1844 e 1852, inspirando muitos com sua conduta de penitente. Virou notícia em vários jornais do Brasil por conta da crença popular que lhe atribuiu o dom de tornar “milagrosa” uma fonte de água, passando essa a ter poderes curativos. Em função desta crença popular, teve de deixar o Brasil e continuar sua peregrinação por outros países do continente, vivendo entre cavernas, grutas e montanhas. Chegou aos Estados Unidos em 1863, onde manteve seus ofícios de eremita, missionário e curandeiro, atraindo a atenção dos moradores pelo estilo de vida peculiar. Em abril de 1869 foi encontrado morto em uma caverna nos arredores do povoado de Mesilla, sul do estado do Novo México. As circunstâncias desta morte até hoje não foram esclarecidas, correndo lendas de que teria sido torturado e assassinado por índios da região. Resumindo, monge João Maria foi, certamente, um dos maiores peregrinos a viajar pela América no século XIX – um verdadeiro “Eremita do Novo Mundo”, como o estou chamando em minhas pesquisas.

[1] Alexandre Karsburg é autor do livro “Sobre as ruínas da velha matriz: religião e política em tempos de ferrovia”, Santa Maria, Editora da UFSM, 2007. Atualmente é doutorando em história pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde desenvolve pesquisa sobre o italiano Giovanni Maria de Agostini, que ficou conhecido no sul do Brasil como monge João Maria.


2. Como se criou a sua lenda?
AK: É preciso esclarecer que a lenda monge João Maria surgiu entre o povo do sul do Brasil entre 1846 e 1848, em função da crença nos poderes miraculosos de uma fonte de água localizada no interior do Rio Grande do Sul, no lugar chamado “Campestre”, perto do atual município de Santa Maria. Embora o monge tenha passado por outros locais – como Sorocaba, em São Paulo, na Lapa, no Paraná –, sempre atraindo o interesse das pessoas que acreditavam ser ele um santo e milagreiro, nada se comparou ao que ocorreu no ano de 1848 nos arredores da vila de Santa Maria. Os jornais da época, publicados do Rio Grande do Sul ao Rio de Janeiro, deram ampla cobertura aos fatos, afirmando que um monge descobrira “águas santas” que a tudo e a todos curava. Poucos sabiam o nome do monge, mas logo foi visto pelo povo como intermediário entre Deus e os homens. Nos locais onde ele procurava fazer retiro espiritual, logo se formava aglomeração de pessoas em busca dos conselhos do santo e atrás de cura para diversas enfermidades. Em certo momento, o ajuntamento popular chamou a atenção das autoridades do Rio Grande do Sul, preocupadas com a segurança da província (na época se chamava província, e não Estado) por causa da proximidade de uma nova guerra, desta vez contra o governador de Buenos Aires Juan Manoel de Rosas. O presidente sul-rio-grandense ordenou à polícia que fossem até o Cerro do Botucaraí e intimassem o monge a se apresentar em Porto Alegre para prestar esclarecimentos sobre a descoberta das supostas “águas santas” e sua participação no ajuntamento popular. A cena que se desenrolou aos pés do Cerro do Botucaraí – próximo ao atual município de Candelária, no centro do Rio Grande do Sul – no dia 17 de outubro de 1848, foi das mais emblemáticas na trajetória do eremita italiano no Brasil. Vendo que o monge estava sendo levado pelos policiais, o povo – em torno de três mil, segundo testemunhos de época – tentou impedir, criando-se um impasse resolvido pelo próprio João Maria de Agostini. Não querendo ser motivo para brigas e mortes, o monge acalmou seus seguidores dizendo que o deixassem partir para Porto Alegre, prometendo voltar em breve “mais santo e mais milagroso”. A idéia do retorno ficou no imaginário popular, sendo transmitida de geração em geração ao lado de histórias que contavam os milagres das águas santas e o poder do monge, visto como santo. No final das contas, ele foi para Porto Alegre, depois para o auto-exílio na Ilha do Arvoredo (litoral de Santa Catarina), para, enfim, ser encaminhado ao Rio de Janeiro – então capital do Império – onde ficou sob vigilância das autoridades da Corte durante o ano de 1849. Enquanto isso, no Rio Grande do Sul, crescia a lenda do monge em função da crença popular que acreditava no seu poder de tornar milagrosas fontes de água. Pela tradição oral, as notícias foram sendo transmitidas, e, de São Paulo à Santa Catarina (até 1853 não existia a província do Paraná), além do Paraguai, Uruguai e províncias argentinas, partiam caravanas com destino à pequena localidade do Campestre, no interior do Rio Grande do Sul. No início do ano de 1849, mais de 9 mil pessoas, a maior parte buscando a cura para doenças, frequentaram as “famosas águas santas”. Esta crença foi levada para áreas do Brasil que o peregrino italiano jamais percorreu, e, com o passar das décadas, outros indivíduos foram confundidos com o monge. A lenda, portanto, teve seu momento inicial entre os anos de 1846 e 1848, no interior do Rio Grande do Sul. A seguir, ganhou força quando o eremita prometeu voltar para o meio dos fiéis, que ficaram aguardando o retorno de seu santo. A partir disso, a lenda monge João Maria cresceu e desenvolveu-se à revelia do sujeito que inspirou esta crença, o peregrino italiano Giovanni Maria de Agostini, que seguiu seu caminho por outras paragens da América e nunca mais retornou ao Brasil.

3. Como era a personalidade, os hábitos e o modo de vida do monge João Maria?
AK: Uma das características marcantes do monge João Maria, ou, como prefiro chamá-lo, eremita Giovanni Maria de Agostini, era o conhecimento que possuía a respeito de Teologia e do Evangelho. Vale assinalar que o jovem Giovanni foi seminarista na Itália, aprendendo, também, a língua latina e o francês enquanto estudante. Aliado ao idioma de origem, ficou hábil no espanhol e no português por causa de suas viagens na América. Portanto, ele se expressava em cinco diferentes línguas, habilidade incomum reconhecida por padres, bispos e até por governantes que o requisitaram para pregar aos moradores do interior. Em sua trajetória pela América recebeu convites para deixar a vida peregrina e se tornar padre. Sempre recusou alegando não ter vocação para o sacerdócio, pois dizia estar cumprindo uma promessa à Virgem Maria. Até o fim de sua vida procurou seguir a risca a conduta inspirada em Santo Antão Abade (o primeiro eremita cristão que se tem notícia na história, viveu no Egito do século IV d.C.), ora como eremita morador de cavernas e grutas, ora como peregrino percorrendo grandes distâncias a pé. Era um anacoreta, fazia vigílias noturnas em oração, recitava os salmos em alta voz, evitava o consumo de carnes, preferindo alimentar-se com o que a natureza oferecia. Tinha predileção pela farinha de milho, com a qual preparava a tradicional polenta. A idéia de que ele não habitava o interior das casas é um tanto exagerada. Em mais de uma oportunidade o italiano irá aceitar os confortos do lar, contudo, quando estava em retiro espiritual no alto dos cerros, dormia em pedras ou no chão mesmo. Durante as peregrinações, uma árvore ou capão de mato servia como dormitório, prática comum a qualquer viajante daquela época. Para atenuar as dificuldades das viagens, o italiano colocava em prática a sua habilidade de artesão, pois fabricava rosários, crucifixos e pequenas imagens de santos, fazendo-os de madeira ou chumbo, trocados com as pessoas que o supriam com mantimentos e dinheiro. É ilusão pensar que o monge não carregava dinheiro, pois nenhum viajante na condição que ele estava poderia recusar o “vil metal”. Porém, foi o seu dom de curandeiro que mais atraiu as pessoas. Ele de fato era um conhecedor da natureza e costumava ensinar os enfermos a usar ervas, plantas e água de fontes para a cura de certas doenças, principalmente afecções de pele. No momento em que o italiano parava em algum cerro, iniciava o estudo da fauna local, buscando na floresta a matéria-prima para as práticas de cura. A longa barba, a vestimenta religiosa e o bordão de peregrino com sino na extremidade – que ele tocava anunciando a sua chegada e chamando as pessoas para ouvirem a pregação –, ao lado do bom conhecimento das coisas santas e fluência em idiomas, deram a ele ascendência sobre a população. Estes elementos impressionaram a tal ponto as pessoas do campo e das cidades que vários passaram a buscar conselhos com o eremita. Não tardou para logo ser acreditado como milagreiro. Como se percebe, a existência do monge era permeada pelo religioso, repleta de atributos que, uma vez conjugados em um só indivíduo, fizeram atiçar a crença popular de ser ele “santo”. Para concluir, dentre os seus atributos pessoais não figurava o da liderança. Considerava-se condutor espiritual, enviado ou intermediário de Deus incumbido de ensinar as pessoas a se redimirem diante do Pai e, com isso, salvarem suas almas. Mas comandar multidões, definitivamente, não fazia parte de sua personalidade.

4. O monge esteve na região de fronteira onde hoje está o município de Dionísio Cerqueira?
AK: Esta é uma questão difícil de responder. Primeiramente, em meados do século XIX, não havia o município de Dionísio Cerqueira, nem ao menos uma vila ou povoado no local. Onde hoje está a cidade, havia campos e florestas habitados por índios bravios, em Campo Erê. Conforme mapa[2] pode-se perceber que o atual extremo-oeste de Santa Catarina e Paraná fazia parte dos Campos de Palmas e Guarapuava, e estas duas vilas estavam localizadas em meio hostil e ainda a ser conquistado e colonizado. Na verdade, era uma região sem jurisdição definida, disputada por Santa Catarina e Paraná, bem como ambicionada pelo Paraguai e Argentina. O governo do Rio Grande do Sul, atendendo orientações das autoridades imperiais no Rio de Janeiro, tinha projeto de construir um caminho que ligasse a região das Missões (atual noroeste gaúcho) à província do Mato Grosso, visando facilitar o comércio e salvaguardar a fronteira contra as investidas argentinas e, principalmente, paraguaias. O Alto-Uruguai e o Rio Peperiguassú eram áreas praticamente desconhecidas do governo brasileiro nas décadas de 1840 e 1850. O monge João Maria de Agostini esteve na província de Misiones entre 1851 e 1852, instalando-se no cume de um cerro chamado Monte Palma. Neste local, paraguaios, argentinos e brasileiros começaram a fazer peregrinação. A fim de não deixar aquela população no ócio, o italiano colocou todos no trabalho, fazendo com que abrissem uma trilha da base até o cume do cerro, cravando cruzes em espaços regulares criando a via-sacra. Pois bem, é possível que os primeiros colonizadores da região de Dionísio Cerqueira, anos depois, dirigiram-se para este cerro, no lado argentino, e trouxeram a crença no monge para casa. De fato é difícil ter certeza da passagem do monge pela região onde seria fundada Dionísio Cerqueira. E, para tornar esta história complexa, vários missionários religiosos passaram por ali naquele tempo, como jesuítas espanhóis e capuchinhos italianos. Faziam missão religiosa com o objetivo de catequizar os índios e apaziguar o clima de disputa por causa das guerras de fronteira. Enviados pelo governo brasileiro, os capuchinhos italianos, ou barbadinhos como também eram conhecidos (pelo uso de longas barbas), atuaram por 30 anos, entre 1845 e 1875, como evangelizadores na extensa área dos Campos de Palmas e Guarapuava. É possível que tenha sido um capuchinho, e não o monge, a ter passado pela região onde hoje está Dionísio Cerqueira. Eles tinham procedimento similar, inclusive se pareciam visualmente. Porém, nada é definitivo em se tratando de pesquisa histórica.

 Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul (AHRS), CG, Maço 19. Mapa da região limítrofe entre Argentina, Paraguai e Brasil, 1881.

5. O monge João Maria de Agostini teria alguma ligação com a Guerra do Contestado?
AK: Este é um dos equívocos mais sérios desta história. Definitivamente, o italiano Giovanni Maria de Agostini não teve qualquer participação na Guerra que assolou o meio-oeste catarinense entre os anos de 1912 e 1916. Ele nem era mais vivo neste período. Como eu disse, o peregrino saiu do Brasil em fevereiro de 1852, passando pela cidade de São Borja, no Rio Grande do Sul, buscando refúgio na província de Misiones no alto do Monte Palma, onde ficou até novembro de 1852 quando se dirigiu para Buenos Aires. Desta capital, seguiu pelos pampas, cruzou a cordilheira e se instalou em uma montanha perto da cidade de Valparaíso, no Chile. Como peregrino foi passando pelos países até chegar ao deserto do Novo México, nos Estados Unidos, em 1863, terra de fronteira e disputada por índios e colonos brancos, estes vindos do leste norte-americano em busca do ouro na Califórnia. Entre missionários católicos e protestantes, o eremita, lá chamado de Juan Maria de Agostini, escolheu um cerro para morar, nas proximidades da vila de Mesilla. Avisado de que havia índios bravios na região, não deu atenção aos perigos. Costumava acender uma fogueira todas as sextas-feiras como sinal de que estava vivo e rezando pelos habitantes da pequena vila de Mesilla. Porém, em uma sexta-feira a fogueira não se acendeu, preocupando os moradores que, no outro dia, subiram o cerro e encontraram o corpo estendido do eremita, morto. Era o dia 19 de abril de 1869. Está sepultado no cemitério da cidade. Sendo assim, todos os outros sujeitos que apareceram no interior de Santa Catarina, após 1852, dizendo-se monge João Maria, ou podem ser considerados embusteiros, ou foram confundidos pelo povo como sendo o italiano João Maria de Agostini. Na verdade, alguns homens passaram a adotar o seu modo de vida, peregrinando e cruzando pelos estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná e São Paulo, vivendo na mendicância, morando em grutas e cavernas e praticando curas com o uso combinado de ervas, plantas e água de fontes. O monge italiano inaugurou uma prática que foi seguida por vários indivíduos nas décadas seguintes. Estes andarilhos acabaram confundindo os devotos que acreditavam estar diante do monge João Maria. Quando estourou a guerra do Contestado, em 1912, um destes andarilhos, chamado de José Maria de Santo Agostinho, liderava um grupo de pessoas que estava tentando levar “vida santa”, mas acabaram por ser pivô de uma disputa maior entre os governos de Santa Catarina e Paraná por questões territoriais. A crença no monge João Maria ultrapassa o período da Guerra do Contestado, é muito anterior a ela e continua até hoje, bem como não é uma crença restrita ao interior catarinense, pois há devotos do monge no Rio Grande do Sul e no Paraná.

6. Em sua opinião, poderíamos considerar a gruta em Dionísio Cerqueira um local de estímulo religioso e de importância histórica?
AK: Sem dúvida que sim. Apesar de não haver confirmação documental da passagem do monge por Dionísio Cerqueira, ou que ele se estabeleceu no ponto onde foi construída uma gruta para orações e romarias, acredito que deva haver por parte das autoridades e da iniciativa privada um estímulo para revitalização do lugar. A gruta tem importância histórica por fazer parte da memória coletiva que se criou a respeito do monge João Maria. A história documental, muitas vezes, não guarda relação com a tradição oral. Se, até agora, não foi possível encontrar registros documentais que provem a passagem do monge pela região de Dionísio, isso, definitivamente, não importa para a população. Ela acredita que ele ali permaneceu um o mais dias, por isso ergueram a capelinha para rezar, orar e meditar, pedindo ou cumprindo promessas, e, também, em memória do monge santo. Este aspecto da religiosidade popular deve ser incentivado, pois revela a força de uma crença que cruzou os séculos e se mantém firme na alma de milhares de devotos do monge João Maria.

Postado por Associação Recreativa e Cultural Nacional

Nenhum comentário:

Postar um comentário